Friday, December 29, 2006

Saudades de Cássia Eller

No dia 29 de dezembro de 2001, eu estava em Jericoacoara, no Ceará. Foi quando anoiteceu que a informação sobre a morte de Cássia Eller se espalhou pela praia, que em breve teria uma festa, com shows de bandas locais.
É quase impossível descrever como ficou o ambiente assim que os cochichos sobre a morte corriam de boca em boca.Dessa experiência nasceu a crônica abaixo, redigida dias depois de Cássia ter ido cantar em outras paragens.


Blues para Cássia Eller

A notícia se espalhou como um manto que se estende sobre o abismo. As pessoas bebiam, fumavam, trocavam idéias sobre os desencontros e belezas da vida. O som rolando. A lua cheia.O bar em plena praia abria as portas quando veio a notícia. Jericoacoara. Pessoas em busca de vida, de uma madrugada de luz, de um sorriso entorpecido submerso na alegria.

Então a notícia veio até mim baixinho, quase um sussurro, uma mentira de fim de ano. Mas não era. “Ela morreu”, e de súbito revirei os escombros de minha vida. Me lembrei da adolescência. Das baladas em bares ou casas de amigos. Ela sempre estava lá. Por isso não podia ter partido - mas tinha.

A noite adentrava. No telão um show gravado. A face severa, os braços deslizando sobre o violão, por vezes o sorriso de uma garotinha. Os olhos da multidão tragados pela tela. Com a imagem ao fundo, uma banda entoou suas canções. Cada peito ali, aflito, se apertava e o reflexo do brilho nos olhos tornava o cenário um mosaico de secretas sensações.

Tive vontade de chorar. E chorei, de mansinho. Era noite de lua cheia. Uma noite em que caminhei até o mar, embebido na escuridão, e lá fiquei até que escutasse um gemido rouco partindo das ondas e se perdendo entre as estrelas.

Monday, December 18, 2006

Videoclipe de Abujamra em carreira solo

Já que André Abujamra entrou na pauta (veja post anterior), selecionei um videoclipe da carreira solo do músico.

A faixa se chama Essa música não existe e está no CD O infinito de pé (Spin Music). Esse trabalhou foi feito logo após o “fim” do Karnak, anunciado pelo próprio líder da banda em 2002.

É uma pena não ter nada do YouTube do excelente Mulheres Negras, formado em 1985 por Abujamra e Maurício Pereira.

Karnak na área

O tradicional show de fim de ano do Karnak, banda liderada por André Abujamra, será realizado nesta quarta e quinta-feira, dias 20 e 21 de dezembro, no Sesc Pompéia, em São Paulo. Atenção para o preço dos ingressos:
R$ 20, R$15 (usuário matriculado)

R$ 8 (trabalhador do comércio ou setor de serviços matriculado e dependentes

R$ 10 (acima de 60 anos e estudante com carteirinha)

Clique aqui para mais informações.

Sunday, December 17, 2006

Dá-lhe Inter

Como está explícito nesta página - dá uma olhadinha lá para cima, ó - que este blog é uma geléia geral, posso perfeitamente ir de Truffaut ao futebol, num corte rápido, seco, à Eiseinsten: parabéns ao Inter! Barça ficou a ver navios. Colorado campeão mundial.

Sou são-paulino até debaixo d'água. Portanto, num primeiro momento cheguei a titubear em torcer pelo Inter. Mas torci. Era o Brasil que estava em campo, e o Inter merece. Brasil campeão mundial interclubes duas vezes consecutivas, apesar da penúria e das lambanças que cercam nosso futebol. Prova de que, dentro do campo, sabemos dar conta do recado.



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Saturday, December 16, 2006

A nova moral de Jules e Jim


Capa da revista francesa Cahiers du Cinéma, sobre Jules e Jim, com Jeanne Moreau em grande estilo.

Um dos grandes momentos da história do cinema, Jules e Jim, terceiro longa-metragem de François Truffaut, é o sentido amoroso levado ao limite. É a revelação do amor na linha tênue entre o efêmero e o perene – entre a liberdade e a posse, a euforia e a perda. Jules e Jim nos mostra que não se brinca com a vida e que erguer o amor a partir de uma nova moral tem um preço a pagar– por vezes, alto demais.

“É bonito redescobrir as leis humanas, mas é mais prático seguir as leis antigas. Nós brincamos com a vida. E perdemos”, afirma Jim, em trecho do filme, que conta os descaminhos do triângulo amoroso entre Jim, o amigo Jules e Catherine, interpretada por Jeanne Moreau.

Da esquerda para a direita, Jim (Henri Serre), Catherine (Jeanne Moreau) e Jules (Oskar Werner)

Disse Truffaut a respeito da obra: “Jules e Jim é um sonho: todos nós sofremos diante do aspecto provisório de nossos amores e esse filme nos leva justamente a sonhar com amores definitivos”.

A canção Le Tourbillon de la vie (O turbilhão da vida) ajuda a compreender esse intricado jogo de relações, como observou certa vez o próprio Truffaut. Segundo ele, a música “marca o tom para o filme e é a sua chave”. Em uma das cenas (veja o vídeo abaixo), Catherine canta a música, acompanhada por Albert, um de seus outros amantes, e assistida por Jules.Diz a letra: “Temos de nos conhecer uma vez, e depois uma segunda vez/ perdemos contato uma vez e depois outra vez/ voltamos a nos encontrar e trouxemos calor um ao outro/ depois nos separamos, cada um, sozinho, partindo de novo no turbilhão da vida”.

Friday, December 15, 2006

Visconti segundo Glauber

Estou lendo as críticas de cinema escritas por Glauber Rocha. Assim como nos longa-metragens, sua linguagem nos textos também costuma seguir o fluxo fragmentado, a inventidade formal, a fraseologia do tormento, a poética alucinada.

Um exemplo disso está em Forma e sentido do cinema, em que discorre sobre Visconti, um dos principais diretores do neo-realismo ao lado de Roberto Rosselini.
O texto está presente em O Século do Cinema, livro que reúne as críticas redigidas por Glauber.


Forma e sentido do cinema

Glauber Rocha

Onde começa o filme e onde termina a literatura? Onde caem a filosofia vaga e sem método, o teatro declamado, a poesia fácil e começa o filme, essa entidade misteriosa que críticos, filmólogos e teóricos invocam?

Que Filosofia é esta que dizem haver em Fellini e Bergman? Onde está a Filosofia com os séculos de existência que possui para aparecer tão fácil assim, especulando, impondo Éticas a partir de um mecanismo do século XX?

O filme absoluto, aquele que não mais investiga a expressão, que não mais experimenta, que não mais propõe um problema mas o resolve em sua origem e surge como Universo total?

Luchino Visconti concentra naquela outra “realidade” nascida da tela branca a transferência de seu espírito para a imagem. E de ponta a ponta existe a Imagem que eu Sou. Que você é. Que é o mundo, suas paisagens e circunstâncias.
Visconti superou o Corte. Superou o Cinema.

(...)

Alain Delon, em Rocco e seus irmãos,
de Visconti

Arista de requinte, VISCONTI É O PROUST DO CINEMA NO SENTIDO FORMAL DO GESTO QUE SE COMPLETA ATÉ UNHA COÇAR A POEIRA.

Visconti não despreza a Palavra nem o Teatro. O Drama está no palco que Visconti constrói para armar os alicerces de seu Universo. Não é aquela velha e tola história de exibir um filme falado sem som para se ver que o entendimento é perdido.

Visconti tem a palavra como Maior Som do Homem e o Palco como o Espaço ideal do Ser Dramatyko.

Thursday, December 14, 2006

Miles Davis e John Coltrane



A partir de meados da década de 1950, o trompetista Miles Davis – ícone do cool jazz, jazz-rock e da fusion – montou um quinteto que marcou a história do jazz. Um dos destaques do conjunto era John Coltrane, um dos maiores saxofonistas de todos os tempos. O grupo passou por várias formações – teve uma fase como sexteto. Entre os músicos que por lá tocaram estão os pianistas Bil Evans e Red Garland, o baterista Jimmy Cobbs e o contrabaixista Paul Chambers.

Entre os discos gravados pelo quinteto/sexteto de Miles Davis estão Cookin’, Relaxin’, Milestones e Kind of Blue, um dos mais cultuados da história do jazz.

Depois de deixar o grupo de Miles, Coltrane lidera um quarteto que se propõe a ousadas experimentações sonoras. Alguns críticos, aliás, classificam o saxofonista como um dos precursores do free jazz.

Miles não fica atrás. No fim da década de 1960, ele mergulha numa viagem estética que vai dar na fusão entre jazz e rock, o que arrepia os cabelos dos defensores da tradição jazzística. E estava muito bem acompanhado nessa aventura: tocavam com ele os tecladistas Herbie Hancock e Chick Corea, os contrabaixistas Dave Holand e Ron Carter e o saxofonista Wayne Shoter, só para citar alguns.

O vídeo abaixo apresenta Miles, Jonh Coltrane e cia tocando So What, presente em Kind of Blue.

Wednesday, December 13, 2006

Uma leitura de A Peste, de Albert Camus


Albert Camus

Escrevi este ensaio por ocasião do curso de pós-graduação em literatura de que participei. É um pouco longo. Mas, quem se interessar por literatura e tiver um tempinho, está aí. A Peste é um livro apaixonante.


A morte e o elogio da vida

Clayton Melo

O romance A Peste, de Albert Camus, foi interpretado por vários críticos como uma alegoria ao nazismo e, por extensão, a todo regime totalitário. O próprio autor admitia que o conteúdo evidente era a resistência européia a Hitler (1). Não bastasse ter sido preparado durante a Segunda Guerra Mundial e publicado em 1947, pela Gallimard, o livro contém alusões à Ocupação ou a ditaduras, como a decretação do estado de sítio na região onde se passa a história ou o fato – provocado justamente pela medida de exceção – de um dos personagens, o jornalista Raymond Rambert, ser proibido de sair da cidade, um símbolo do cerceamento da liberdade de imprensa.

Se o romance pode ler lido pela ótica da resistência política, também é verdade que abre espaço para uma interpretação de cunho filosófico-existencial. A Peste permite a reflexão, por exemplo, sobre como a iminência da morte relembra ao homem sua finitude e o faz agarrar com todas as forças a vida, que teme perder a qualquer momento. A dor, o medo e a solidão gerados pela doença podem resgatar sentimentos até então anestesiados pelo cotidiano, como solidariedade, amor e compaixão. Em outros termos, A Peste mostra que a perspectiva da morte modifica a postura do homem perante o mundo e a si próprio, redefinindo valores e crenças e gerando perdas e ganhos, como o resgate da essência das relações humanas. Além de trazer conceitos que permeiam toda a obra de Camus, o romance se relaciona com as teorias de Heidegger, como a angústia. A aproximação com o autor de Ser e Tempo se estende também à concepção de morte, tema recorrente à filosofia heideggeriana.

A Peste se passa em Oran, pequena cidade da Argélia cuja vida é monótona. Os habitantes vivem para o trabalho e para o acúmulo de riquezas. Seguem meticulosamente a rotina, inclusive nas questões do coração, com casais que vivem juntos por força do hábito. Não há espaço para devaneios amorosos. “Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo ou reflexão, somos obrigados a amar sem saber” (2)
Subitamente, a normalidade cai por terra quando ratos agonizam por toda a cidade. Logo depois, a morte alcança também os moradores. No início, há um estranhamento com o fenômeno cuja causa ou explicação é desconhecida. Mas com o avanço da doença, o que era uma simples preocupação torna-se motivo de horror generalizado. Ninguém está livre desse inimigo cuja identidade só é reconhecida depois muitos cadáveres: peste bubônica.


Trata-se de um romance que coloca o homem frente à situação-limite que mais o assusta: a morte, não como resultado do ciclo da existência, o que é natural, mas trágica, dolorosa, com sofrimento. E mais: gratuita, um capricho cruel que surge repentinamente, impondo um fim gradual e pavoroso. Dada sua onipresença e força simbólica, a morte é uma personagem nesse livro da separação e da esperança.


Romance e filosofia

Um dos caminhos para melhor entender o ficcionista Camus é analisar o pensamento filosófico do escritor franco-argelino, relacionando as idéias do texto estudado ao restante de sua obra. O ponto de partida dessa investigação é saber que Camus se servia da ficção como meio para expressar reflexões, que exercitou sob a verve do ensaísta – seus dois maiores testamentos filosóficos são O Mito de Sísifo e O Homem revoltado. “Um romance nunca passa de uma filosofia posta em imagens. Em um bom romance, toda a filosofia passa pelas imagens.” (3)
Duas idéias centrais norteiam a obra de Camus, o absurdo e a revolta. Para ele, o absurdo surge pelo fato de o homem procurar no mundo ordem e racionalidade, mas encontrar somente o irracional e a desordem. Em outras palavras, o

absurdo consiste na incompatibilidade entre um anseio humano de explicação para o mundo e o mistério essencial desse mundo inexplicável, entre a consciência da morte e o desejo de uma impossível eternidade, entre o sonho de felicidade e a existência do sofrimento, entre o amor e a separação dos amantes. (4)

Em Camus, a morte surge como um dos pólos do absurdo, como observa Jean Paul Sartre na introdução de O Estrangeiro, de Camus:

O absurdo fundamental manifesta antes de tudo um divórcio: o divórcio entre as aspirações do homem à unidade e o dualismo intransponível do espírito e da natureza, entre o impulso do homem em direção ao eterno e o caráter finito de sua existência, entre a “preocupação” que é a sua própria essência e inutilidade de seus esforços. (5)

Sartre
Não é outra coisa o que ocorre em A Peste. Os infortúnios de Oran lançam os personagens numa roleta da russa. As ações preventivas parecem não frear a doença e, assim, preservar a vida. Além disso, há um descompasso entre a busca da felicidade e o sofrimento real, o desejo de amar e a solidão da doença, o sopro de vida e o odor sufocante dos cadáveres.

No outro grande romance de Camus, O Estrangeiro, o absurdo da existência é a mola-mestra que conduz a história de Meursault. Indiferente à ordem do mundo, ele mata, sem justificativa, dois árabes numa praia. Condenado, declara apenas que cometeu os assassinatos “por causa do sol”. Não tenta provar inocência, pois se defender representaria aceitar as regras de um jogo que recusa. É um estrangeiro entre os próprios homens, “um desses terríveis inocentes que constituem o escândalo de uma sociedade porque não aceitam as regras do jogo.”(6)

Se em O Estrangeiro Camus concentra o absurdo no indivíduo, em A Peste ele transpõe as lentes para o absurdo coletivo. Mas em ambos os casos manifestam-se as marcas do absurdo, como a gratuidade – da vida, da morte, dos acontecimentos – e a irracionalidade do mundo.

O homem do absurdo não se suicidará. Pôr fim à própria vida eliminaria o divórcio com o mundo, mas não resolveria o absurdo, pois este é uma condição – e aqui entramos no outro grande tema de Camus, a revolta. A Peste é o exemplo da revolta metafísica de que fala O Homem revoltado, livro que sistematiza o pensamento político do autor. A revolta metafísica é definida por Camus como o movimento pelo qual um homem se insurge contra a sua condição e contra toda a criação; é a cumplicidade no absurdo. “O mal que apenas um homem sentia torna-se uma peste coletiva” (7). Manifesta-se assim a contradição entre desejo de durar e o destino de morte do homem, como aponta Manuel da Costa Pinto:

Assimilando a revolta ao absurdo, Camus afasta-se de saída de qualquer solução para o impasse. Pois, assim como o homem absurdo rola sua pedra pela encosta da montanha, o revoltado retira de seu próprio sentimento as condições de vivê-lo sem trair essa existência que tragicamente deverá aceitar.(8)


Para Camus, o sentimento de revolta estreita os laços de fraternidade:

A solidariedade dos homens se fundamenta no movimento de revolta e esta, por sua vez, só encontra justificação nessa cumplicidade. (...) Para existir, o homem deve revoltar-se, mas sua revolta deve respeitar o limite que ela descobre em si própria e no qual os homens, ao se unirem, começam a existir. (9)

Alguns personagens d’A Peste ilustram a comunhão na revolta. A começar pelo protagonista, o médico Bernard Rieux, narrador da história. É um homem preocupado com o próximo. Não mede esforços para conter a doença, mesmo sabendo das limitações de uma luta inglória. Privilegia o bem comum e a coletividade, a ponto de suportar calado o drama pessoal de se manter à distância da esposa, que, enferma – não pela peste –, é tratada em outra cidade.

À volta de Rieux forma-se um pequeno grupo de colaboradores, como Rambert, Tarrou e Grand, homens unidos pele peste e que aprenderam a compartilhar angústias, desejos e temores. É em torno de personagens como esses que o médico conduz sua crônica, como ele mesmo define o relato.

Relato que não esconde os momentos de dúvidas e fraquezas do protagonista, mas também demonstra a lucidez de Rieux ao observar a desordem do mundo. Ele sabe que estão que todos mergulhados no absurdo coletivo e que é preciso aceitar a condição do absurdo, para então suportá-lo. Mas aceitar não significa jogar a toalha, pois devemos viver intensamente a vida que nos é reservada. “O homem revoltado é aquele que enfrenta seu próprio absurdo”. (10)

Muitos moralistas novos de nossa cidade diziam então que nada servia para nada e que era preciso cair de joelhos. E Tarrou, Rieux e os amigos podiam responder isto ou aquilo, mas a conclusão era sempre o que eles sabiam: era preciso lutar, desta ou daquela maneira e não cair de joelhos. Toda a questão residia em impedir o maior número possível de homens de morrerem e de conhecerem a separação definitiva. Para isso, havia um único meio – combater a peste. Esta verdade não era admirável, era apenas conseqüente. (11)

Nessa luta não há heróis. Mais importante que atos de bravura está a felicidade, que deve ser buscada a todo custo. Para realçar literariamente essa posição, Camus serve-se de um anti-herói, o já citado Grand, um modesto funcionário municipal que se satisfazia em ser útil nas batalhas miúdas do dia-a-dia.

Sim, se é verdade que os homens insistem em propor-se exemplos e modelos a que chamam heróis, e se é absolutamente necessário que haja um nessa história, o narrador propõe este herói insignificante e apagado (Grand) que só tinha um pouco de bondade no coração e um dilema aparentemente ridículo. Isso dará à verdade o que é devido, à adição de dois e dois o seu total de quatro, e ao heroísmo o lugar secundário que lhe cabe, logo depois, e nunca antes, da exigência generosa da felicidade. Isto dará

também a esta crônica seu caráter, que deve ser o de uma relação feita com bons sentimentos, isto é, sentimentos que nem são ostensivamente maus nem exaltadores do espetáculo. (12)


Personagem onipresente

A exaltação da felicidade dá a chave para se compreender o peso simbólico da morte em A Peste. Insuperável e em diferentes formas, como a velhice ou a doença, a morte impede a felicidade integral do ser humano. Não é só em A Peste que Camus aborda a questão. O medo de morrer é expresso em outros livros, como L’Envers et I’Endroit, coletânea de cinco textos que discorrem sobre velhice, religião e morte.

Alguns fatores explicam a correlação entre felicidade e morte em Camus. Em primeiro lugar, o fato de o escritor se situar no contexto da literatura existencialista da metade inicial do século passado. Esta vertente se dedicou a “descrever situações humanas em que mais se notam os traços da problematicidade radical do homem, sublinhando assim suas vicissitudes menos respeitáveis e mais tristes, pecaminosas ou dolorosas, e também a incerteza da ação humana” (13). Uma forte característica dessa linhagem é o ateísmo. E onde não há Deus, tudo se resume aos bens do mundo.

Isso explica a redescoberta da vida em A Peste e as transformações na forma como os habitantes de Oran se relacionam, fortalecendo os laços entre casais esquecidos do amor e entre aqueles que provaram na carne a dor da separação.

Na filosofia moderna, há reflexões sobre o impacto que o reconhecimento da morte provoca no ser humano. Isso aparece, por exemplo, na chamada filosofia da vida, particularmente com Dilthey. Para o pensador,

a relação que caracteriza de modo mais profundo e geral o sentido de nosso ser é a relação entre vida e morte porque a limitação de nossa existência pela morte é decisiva para a compreensão e avaliação da vida. (14)

Essa nova postura mediante a ameaça da morte também se relaciona com as teorias heideggerianas. Existencialista, o filósofo alemão considerou a morte como uma possibilidade existencial, como o fim do Dasen (“ser aí”), ou seja, do Ser no mundo, e não como término da existência como Ser. O Dasein está sujeito ao tempo (Zeit). A morte então é o fim do Ser no tempo. Dessa maneira, o homem como Ser no tempo é aniquilado com a morte, mas na condição de Ser em Si-Mesmo permanece Ser (Sein). Como aponta Abbagnano, ao comentar a posição de Heidegger, a morte

é a possibilidade absolutamente própria porque diz respeito ao próprio ser do homem(...) É apenas no reconhecer a possibilidade da morte, no assumila(sic) como decisão antecipadora que o homem encontra seu ser autêntico. (15)

Ao se entender a morte como possibilidade, a compreensão de seu significado advém de sua antecipação emocional, a angústia. Segundo Heidegger, a “angústia é a situação emotiva capaz de manter aberta a contínua e radical ameaça que sai do ser mais íntimo e isolado do homem.”(16)

Heidegger
Todas essas relações com Camus são factíveis. Em A Peste, no entanto, convive simultaneamente uma outra simbologia. Deixando de lado a análise existencial a respeito da morte concreta, o romance sugere também a visão da morte o término de um ciclo que permite o nascimento de outro. Perto do desfecho do livro, Camus faz referências ao anseio de recomeço que acalentava os moradores da cidade com o fim da peste. Uma passagem bem elucidativa dessa idéia – e também da valorização das relações humanas em meio ao terror – é o momento em que Rieux e Tarrou, já com a epidemia controlada, vão ao cais tomar um banho de mar em “prol da amizade” (17). A imagem do mar reforça a idéia de purificação depois da tempestade.

Quando viram de longe a sentinela da peste, Rieux sabia que Tarrou dizia para si próprio, como ele, que a doença acabava de esquecê-los, que isso era bom, e que agora era preciso recomeçar (18)

Fazia-se mesmo necessário um novo começo, mas certamente não seria o último, porque o “bacilo da peste não morre” (19). Adormece, e então renasce. Não morre porque é o símbolo do absurdo, essa sensação de mal-estar que acompanha o homem ao longo da existência.
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Notas bibliográficas

1. Albert Camus, “Carta de Albert Camus a Roland Barthes”, em www.cadernosdecamus.blogspot.com
2. Albert Camus, A Peste, p.8.
3. Albert Camus, “A Náusea, de Jean Paul Sartre”, em A Inteligência e o cadafalso, p 133.
4. Abril Cultural, “Vida e obra”, em edição reunida de O Estrangeiro e O Estado de sítio, p.11.
5. Jean Paul Sartre, “Introdução” de O Estrangeiro, p. 7.
6. Idem, p.13.
7. O Homem revoltado, p. 35.
8. Manuel da Costa Pinto, Albert Camus – um elogio do ensaio, p. 182.
9. Albert Camus, O Homem revoltado, p. 34.
10. Vicente Barreto, Camus – vida e obra, p. 53.
11. Albert Camus, A Peste, p. 94.
12. Idem, p. 97.
13. Nicola Abbagnano, História da filosofia, volume 12, p. 47.
14. Abbagnano, Dicionário de Filosofia, p. 684.
15. Abbagnano, História da filosofia, p. 58 e 59.
16. Idem.
17. Albert Camus, A Peste, p.177.
18. Idem, p. 179.
19. Idem, p. 213.


Bibliografia

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora, 2000.
____________. História da Filosofia, vol. 12. Lisboa, Editorial Presença, 2001.
BARRETO, Vicente. Camus – vida e obra. São Paulo, Paz e Terra, s/d.
CAMUS, Albert. “Carta de Albert Camus a Roland Barthes”, em
www.cadernosdecamus.blogspot.com. São Paulo, 24-01-2004.
____________. O Estrangeiro. Lisboa, Edição livros do Brasil, s/d.
____________. O Estrangeiro. São Paulo, Abril Cultural, 1982.
____________. O Homem revoltado. Rio de Janeiro, Record, 2003.
____________. A inteligência e o cadafalso e outros ensaios. Record, 2002.
____________. O Mito de Sísifo. Rio de Janeiro, Record, 2004.
____________. A Peste. Record. Rio de Janeiro, Record, s/d.
____________.A Queda. Record. Rio de Janeiro, Record, 2002.
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Martins Fontes, 1998.
ROLLEMBERG, Marcello. “A inteligência e a moral”. Jornal da USP. São Paulo, 7 a 13 de setembro de 1998.
SARTRE, Jean Paul. “Introdução” de O Estrangeiro. Lisboa, Livros do Brasil, s/d.
PINTO, Manuel da Costa. Albert Camus – um elogio do ensaio. São Paulo, Ateliê Editorial, 1998.

Monday, December 11, 2006

Já foi tarde

Augusto Pinochet
1915 - 2006

Wednesday, December 06, 2006

Noitão de cinema

Última madrugada de filmes do ano promovida pelo HSBC Belas Artes, em São Paulo. Veja os detalhes no material de divulgação, enviado pelo HSBC, aqui embaixo.

HSBC BELAS ARTES APRESENTA O ÚLTIMO NOITÃO DE 2006

O HSBC Belas Artes reservou uma programação especialíssima para o último Noitão de 2006, sexta-feira, 8 de dezembro, a partir da meia-noite, trazendo uma seleção de três filmes realizados em países asiáticos, entre eles o comercialmente inédito no Brasil Dias Selvagens (Days of Being Wild), o segundo filme dirigido pelo cultuado cineasta de Hong Kong, Wong Kar-Wai, realizado em 1991 e que só agora chega ao País, através da distribuidora Pandora Filmes.

Este magnífico filme marca a primeira experiência de Wong Kar-Way com o diretor de fotografia australiano Christopher Doyle, selando uma feliz parceria que dura até hoje, e também já conta com a presença de diversos atores-fetiche, freqüentes nas demais obras de Kar-Wai, entre eles a lânguida e bela ex-miss Hong Kong Maggie Cheung enfrentando a não menos charmosa Carina Lau, com quem disputa o mesmo homem, representado pelo talentoso e sedutor Leslie Cheung (de "Felizes Juntos", falecido em 2003), em clima de inebriante sensualidade.

O filme seguinte, Tóquio Porrada (Tokyo Fist, de 1995), é assinado pelo mestre do exagero e do humor bizarro, o japonês Shin'ya Tsukamoto, numa história também focada num triângulo, neste caso formado por dois homens e uma garota. Tudo começa quando um jovem executivo visita uma academia de boxe e lá encontra um antigo desafeto, um sujeito incômodo, que invade a vida do rapaz, forçando intimidades, até dar em cima de sua noiva, uma mocinha, até então, suave e de gestos elegantes, causando um inevitável embate de tirar o fôlego e em seqüências de elevado teor sado-masoquista.

O filme-surpresa, por sua vez, também possui ritmo frenético, visual moderno e muita originalidade. Um filme tão belo merece muitos dos mais enaltecedores adjetivos e predicados, mas, corre-se o risco de evidenciar o segredo e isso, definitivamente, não deve acontecer. Nos intervalos das sessões, o Noitão promove sorteios de brindes (filmes em DVD, CDs da gravadora Trama, convites exclusivos do HSBC Belas Artes, livros e bottons by Renato Sujo). O encerramento da maratona, ao amanhecer do sábado, se dá com um café da manhã oferecido a todos os "sobreviventes". (Divulgação Belas Artes).

Anote o endereço:
HSBC BELAS ARTES
Avenida Consolação, 2423, São Paulo
Clique aqui acessar o site

Tuesday, December 05, 2006

Por onde andará Diana?



O nosso amigo e leitor Guto Ruocco – esse ilustre senhor que assina as mensagens aqui como “Anônimo”, por pura jequice de não saber colocar o nome dele nas mensagens (brincadeira, Guto!), publicou em PONTO DE FUGA a letra da bela Tudo o que eu tenho, música-tema de O céu de Suely, de Karim Aïnouz. Versão feita por Rossini Pinto para Everything I own, de David Gates, a canção é uma baladinha brega chiclete deliciosa, que emociona pela força de sua simplicidade.

Como diz o jornalista Pedro Alexandre Sanches, Tudo o que eu tenho é uma “balada soul de altos teores, psicodélica, um Roberto Carlos louro de cabelos cacheados, voz aguda e cílios longos”.

Ela foi gravada no disco Diana, de 1972, sob direção artística de Raul Seixas – Raulzito também é co-autor de Ainda queima a esperança, outro hit de Diana.

Pois eis que 36 anos depois do lançamento, Tudo o que eu tenho volta à baila, e envolta numa história curiosa.

Em entrevista a O Globo Online, Aïnouz disse que há meses está à procura de Diana. Ele gostaria que ela participasse da festa de lançamento do filme. Mas não encontrou. Ninguém sabe, ninguém viu Diana, ex-mulher de Odair José, que nos tempos áureos da década de 1970 exibia fartos cabelos louros.

Cadê, Diana?

É possível ouvir a música no Globo.com. Basta fazer um rápido cadastro, gratuitamente. Clique aqui para acessar o site.

Monday, December 04, 2006

Tarde Beatles: Revolution e Lucy in the sky with diamonds

Foi só visitar o site com material sobre Beatles (leia post anterior) que não resisti: busquei um vídeo de Revolution e Lucy in the sky.


Revolution


Lucy in the sky with diamonds

Site traz vídeos do Beatles


O embaixador de São Caetano, Roberto Perrone, indica ao PONTO DE FUGA um ótimo site com dezenas de vídeo dos Beatles. Traz também discografia, filmografia, letras e biografias etc. Duro é entender o que está escrito lá - com exceção das letras, que estão em inglês.

Só tenha cuidado para não ficar se empolgar vendo os vídeos e esquecer de trabalhar.

Clique aqui para ir ao site

Se quiser ir direto para a página com os vídeos, clique aqui

O céu de Suely



O Céu de Suely é o céu de todos nós, é o substantivo feminino à flor da pele. É estar, simplesmente. É a busca de um sentido que não se qual é – é a espera de um norte, de um sul, de um poente para descansar. O Céu de Suely é nosso vazio suplicante; é a discrição de um sonho recolhido na dor, um blues em nosso Mississipi. A nostalgia do futuro, o sebastianismo que nos consome. O Céu de Suely é a urgência de viver, é o nosso abandono irrecuperável.

Saturday, December 02, 2006

"Sem medo, eu vou para Deus"

Malachi Ritscher, 52 anos, de Chicago, nos Estados Unidos, se afligia com a guerra do Iraque. Com os tempos sombrios. Então planejou cuidadosamente todos os detalhes: deixou a cópia da chave do apartamento com um amigo, preparou uma lista de tarefas para a família, publicou o próprio obituário em seu site. Na carta, mostrava-se indignado com a guerra. Esperava que seu plano reverberasse, fizesse um barulho insuportável, acordasse o mundo para a loucura da intolerância.

No dia 3 de novembro, às 6h30, Ritscher, um músico que lutava contra a depressão, foi ao centro de Chicago e postou-se perto de uma estátua. Em seguida ligou uma câmera de vídeo e registrou o momento em que ateou fogo em si mesmo.

Mas ninguém sacou a jogada. Ninguém ficou sabendo de seu propósito. Morreu como um anti-mártir, um herói às avessas.

"Este é meu pronunciamento: se eu sou obrigado a pagar por sua guerra bárbara, eu escolho não viver em nosso mundo. Me recuso a financiar o assassino em massa de civis inocentes, que nada fizeram para ameaçar nosso país", escreveu na carta de despedida. "Se uma morte pode dizer algo, em qualquer pequena forma, eu digo para o mundo: desculpem-me pelo que fiz por você, estou envergonhado pelo caos causado pelo meu país."

A última frase da carta foi: "Sem medo, eu vou para Deus".



O corpo de Malachi Ritscher foi reconhecido cinco dias depois. E só se soube que o suicídio foi um ato de protesto semanas mais tarde, graças ao trabalho de um jornalista local, que se empenhou em investigar o caso.

A carta está disponível no site

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Friday, December 01, 2006

Curso sobre Nouvelle Vague







A Casa do Saber, em São Paulo, ministra entre 5 e 14 de dezembro um curso sobre a Nouvelle Vague, o movimento que renovou o cinema na década de 1950 e teve como expoentes Truffaut, Godard, Alain Resnais e Eric Rohmer, entre outros. As aulas serão ministradas pelo jornalista Alcino Leite Neto.

Atenção para o serviço:


Início: 05 DEZ
Duração: 4 encontros
Dias/horários: Terças-Feiras, Quintas-Feiras, às 20h (05/12, 07/12, 12/12, 14/12)
Valor: R$ 160,00 na inscrição + 1 parcela de R$ 160,00

O programa:


05 DEZ | 1. O QUE É O CINEMA?

André Bazin e o neo-realismo. Os "Cahiers du Cinéma", a redescoberta de Hollywood, a política dos autores e a formação de um novo aparato crítico

07 DEZ | 2. A MODERNIDADE EM CURSO
Os primeiros filmes. François Truffaut e a ruptura lírica. Jean-Luc Godard e o gênero reflexivo. O caso Alain Resnais

12 DEZ | 3. A REVOLUÇÃO PERMANENTE DE GODARD
Apresentação da obra do principal diretor moderno, a partir de "Uma Mulher É uma Mulher" (1961) até "Made in USA" (1967)

14 DEZ | 4. MAIO DE 68 E A CRISE DA CINEFILIA
A erupção do político. A morte do "autor". Truffaut e o retorno ao classicismo. Godard e o cinema militante. Situação atual

Alcino Leite Neto. Jornalista, editor de Moda da Folha de S. Paulo e da revista eletrônica Trópico, da UOL. Foi editor do caderno Mais!, da Ilustrada, e correspondente da Folha em Paris.


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A internet isola ou aproxima?


A internet contribui
para isolar ou aproximar as pessoas? Pelo que percebo do comentário geral, parece prevalecer a idéia que a rede distancia as pessoas, que na era digital tenderiam a um modo de relação apenas virtual, frio, em detrimento do contato pessoal. Como estamos no olho do furacão, é difícil dar uma resposta definitiva - e a questão certamente é muito complexa e exige estudos aprofundados. Mas alguns indícios apontam para a direção oposta, ou seja, a web pode funcionar como um canal para aproximação das pessoas, incluindo os encontros fora da rede.

Pelo menos é que constata o estudo Annenberg Digital Future Project, divulgado ontem pela Universidade do Sul da Califórnia (USC). Segundo a pesquisa, para 43% dos americanos que pertencem a comunidades na internet, o mundo virtual é tão importante quanto o real. Os entrevistados pela pesquisa, que levou seis anos para ser concluída, fizeram amizade com 1,6 pessoa por ano em média. Em outras palavras, as relações construídas no meio digital se estenderam para o chamado mundo real.

Os pesquisados também conheceram, em média, 4,65 pessoas, com as quais se relacionaram exclusivamente no universo virtual. A web também ajudou 40% a manter o contato com amigos e parentes.

A blogosfera, por sua vez,
só cresce: o número de blogueiros dobrou desde 2003, o que significa que 7,4% dos internautas têm blogs. "Mais de uma década depois de a web se abrir para o público, estamos observando a emergência da internet como o poderoso fenômeno social e pessoal em que sabíamos que ela se transformaria", disse Jeffrey Cole, diretor do estudo, em comunicado.

E aí, o que você acha: a internet isola ou pode realmente fortalecer o contato entre as pessoas?

Clique aqui para obter mais detalhes sobre o estudo